Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

Tags

Pular para o conteúdo principal

Antologia Cordel da Compadecida


Esta antologia reúne os folhetos dos quais Ariano Suassuna tirou os motivos e peripécias de seu Auto da Compadecida. Embora o autor paraibano tenha se utilizado de muitos temas populares em sua peça, estes poemas são as fontes principais.

O primeiro ato, em que João Grilo inventa um testamento quando o padre se recusa a benzer o cachorro da Mulher do Padeiro, foi baseado no folheto O Dinheiro ou O Testamento do Cachorro, de Leandro Gomes de Barros.

(...)

Um inglês tinha um cachorro
De uma grande estimação
Morreu o dito cachorro
E o inglês disse então:
― Mim enterra esse cachorro
Inda que gaste um milhão

Foi ao vigário, lhe disse:
― Morreu cachorra de mim
E urubu do Brasil
Não poderá dar-lhe fim
Cachorro deixou dinheiro
Perguntou o vigário: ― Ah! Sim?

― Mim quer enterrar cachorro!
Disse o vigário: ― Oh! Inglês!
Você pensa que isto aqui
É o país de vocês?
Disse o inglês: ― Oh! Cachorro
Gasta tudo desta vez

Ele antes de morrer
Um testamento aprontou
Só quatro contos de réis
Para o vigário deixou
Antes de o inglês findar
O vigário suspirou

― Coitado! ― disse o vigário,
De que morreu esse pobre?
Que animal inteligente!
Que sentimento mais nobre!
Antes de partir do mundo
Fez-me presente do cobre

Leve-o para o cemitério
Que eu vou encomendar
Isto é, traga o dinheiro
Antes dele se enterrar
Estes sufrágios fiados
Éfativo* não salvar

*fativo = factível, que pode acontecer

O segundo ato é baseado na obra O Cavalo que Defecava Dinheiro, também de Leandro, mas Suassuna transforma o cavalo da história original em um gato. Encontra-se nesse folheto também o enredo da rabeca mágica (gaita, na peça) que ressuscita os mortos.

(...)

Aí chamou o compadre
E saiu muito avexado
Para o lugar onde tinha
O cavalo defecado
O duque ainda encontrou
Três moedas decruzado

Então exclamou o velho:
— Só pude achar essas três
Disse o pobre: — Ontem à tarde
Ele botou dezesseis
Ele já tem defecado
Dez mil réis mais de uma vez

Enquanto ele está magro
Me serve de mealheiro
Eu tenho tratado dele
Combagaço de terreiro
Porém, depois dele gordo
Não há quem vença o dinheiro

Disse o velho: — Meu compadre
Você não pode tratá-lo
Se for trabalhar com ele
É com certeza matá-lo
O melhor que você faz
É vender-me este cavalo

(...)

O velho muito contente
Tornou então repetir:
A rabeca já é minha
Eu preciso a possuir
Ela para mim foi dada
Você não soube pedir

Pagou a rabeca e disse:
Vou já mostrar à mulher
A velha zangou-se e disse:
Vá mostrar a quem quiser
Eu não quero ser culpada
Do prejuízo que houver

O senhor é mesmo um velho
Avarento e interesseiro
Que já fez do seu cavalo
Que defecava dinheiro?
Meu velho, dê-se ao respeito
Não seja tão embusteiro

O velho, que confiava
Na rabeca que comprou
Disse a ela: — Cale a boca
O mundo agora virou
Dou-lhe quatro punhaladas
Já você sabe eu quem sou

Ele findou as palavras
A velha ficou teimando
Disse ele: — Velha dos diabos
Você inda está falando?
Deu-lhe duas punhaladas
Ela caiu arquejando

O velho muito ligeiro
Foi buscar a rabequinha
Ele tocava e dizia:
— Acorde, minha velhinha!
Porém a pobre da velha
Nunca mais comeu farinha

O terceiro ato, em que João Grilo pede ajuda à Compadecida para convencer Manuel (Jesus Cristo) a não deixar o Diabo levá-lo para o inferno, foi tirado de duas versões de um mesmo auto popular, sobre o tema medieval do julgamento da alma, criadas por dois dos maiores cantadores de todos os tempos: O Castigo da Soberba, do cearense Anselmo Vieira de Souza, e A Peleja da Alma, do paraibano Silvino Pirauá de Lima.

O Castigo da Soberba

(...)

CÃO: Já Maria está puxando
A coisa se desmantela
Aquilo nunca se deu
Vejam que mentira aquela!
Eu vi que esta mulher
Todo mundo ilude ela

Ela põe-se a esmiuçar
Puxa de diante pra trás
Pega com tanta pergunta
Também isso não se faz
Até aparecer coisa
Que ninguém se lembra mais

ALMA: Mãe amada, me livrai
Das grandesrigoridade
Sei que gastei os meus dias
Envolvido em vaidade
Mas espero ser valido
Valei-me, por caridade!

MARIA: Alma, o que tu me pediste
Eu não posso prometer
Se tivesse em penitença
Com razão eu ia ver
Mas assim é impossível:
Te salvar, sem merecer

ALMA: Rainha, Mãe Amorosa
Esperança dos mortais
Quem recorre a vosso nome
Sei que não desamparais
Eu pegando em vossos pés
Sei que não largo eles mais

A Peleja da Alma

(...)

A alma viu-se apertada
De angústia e agonia
Saiu dos pés de Jesus
Para os da Virgem Maria
Para ver se como mãe
Ela ainda o socorria

Maria, Virgem Maria
Mãe de meu Deus Redentor
Mãe de Deus e mãe de Cristo
Mãe do Padre Salvador
Rogai por mim a teu filho
Que nesta hora me condenou!

— Alma sai-te dos meus pés
Para que vem valer-te de mim?
Que meu filho, reto juiz
Não faz o que é ruim

Lucifer se levantou
Disse: ― Alma, que viesse ver cá?

Manuel já deu a sentença
Maria jeito não dá
Aquilo que Manuel faz
Não é pra Maria desmanchar

— Senhora, tem compaixão
De minha necessidade
Já que o pecado roubou
A minha felicidade

O personagem João Grilo é originário dos contos populares da Península Ibérica, documentados desde o século XVII. Presepeiro, astucioso e cínico como Pedro Malasartes, apareceu em folheto de cordel no Brasil, pela primeira vez, em 1932, na obra Palhaçadas de João Grilo, de João Ferreira de Lima. Mais tarde, um autor não identificado ampliou a história original e publicou-a com o título de “Proezas de João Grilo”. (Obs.: este folheto não faz parte da antologia, mas pode ser lido em outra postagem deste blog...)

A antologia Cordel da Compadecida é uma ho­menagem a esses poetas extraordinários, de imaginação fértil e coração magnânimo, cheios de humor e perspicácia, de grande capacidade de invenção e observação, verdadeiros tradutores da alma popular e cria­dores imortais da cultura nordestina e brasileira.

O ebook contém um extenso glossário de regionalismos, casos gramaticais e curiosidades, com o objetivo de ajudar os leitores, principalmente os jovens estudantes, a apreciar ainda mais os poemas. Veja alguns verbetes:

correu ela = tem dois sentidos: tanto o de “socorrer” como o de “examinar minuciosamente”
ninguém o quer conhecer = ninguém vai lhe dar valor ou crédito
enxovia = masmorra, calabouço
surrão = saco, bornal, geralmente de couro
rojão = ritmo intenso, marcha forçada
fazer ligeiro = agir com descuido, apressadamente, para terminar logo a tarefa

* * *

Um pouco sobre os Autores:



 

Leandro Gomes de Barros (1865 – 1918)

Leandro Gomes de Barros nasceu em Pombal, Pernambuco. Órfão, foi criado por um tio que era padre e o ensinou a ler e escrever. Pioneiro do cordel, publicou mais de 600 títulos em folhetos que ele mesmo imprimia e vendia. Foi também o primeiro poeta popular a viver exclusivamente de sua arte.

Entre suas obras estão clássicos como: Batalha de Oliveiros e Ferrabrás, História da Donzela Teodora, A Vida de Cancão de Fogo e seu Testamento, A Vida de Pedro Cem, Casamento e Divórcio da Lagartixa, História de João da Cruz, História do Boi Misterioso, Juvenal e o Dragão, O Cachorro dos Mortos, A Órfã Abandonada e tantos outros poemas fundamentais da literatura brasileira.

Sobre ele, Carlos Drummond de Andrade escreveu:

Em 1913, certamente mal informados, 39 escritores, num total de 173, elegeram por maioria relativa Olavo Bilac príncipe dos poetas brasileiros. Atribuo o resultado a má informação porque o título, a ser concedido, só poderia caber a Leandro Gomes de Barros, nome desconhecido no Rio de Janeiro, local da eleição promovida pela revista Fon-Fon, mas vastamente popular no Nordeste do país, onde suas obras alcançaram divulgação jamais sonhada pelo autor de ‘Ouvir Estrelas’.
"E aqui desfaço a perplexidade que algum leitor não familiarizado com o assunto estará sentindo ao ver defrontados os nomes de Olavo Bilac e Leandro Gomes de Barros. Um é poeta erudito, produto da cultura urbana e burguesa média; o outro, planta sertaneja vicejando à margem do cangaço, da seca e da pobreza. Aquele tinha livros admirados nas rodas sociais, e os salões o recebiam com flores. Este, espalhava seus versos em folhetos de cordel, de papel ordinário, com xilogravuras toscas, vendidos nas feiras a um público de alpercatas ou pé no chão.
"A poesia parnasiana de Bilac, bela e suntuosa, correspondia a uma zona limitada de bem-estar social, bebia inspiração europeia e, mesmo quando se debruçava sobre temas brasileiros, só era captada pela elite que comandava o sistema de poder político, econômico e mundano. A de Leandro, pobre de ritmos, isenta de lavores musicais, sem apoio livresco, era o que tocava milhares de brasileiros humildes, ainda mais simples que o poeta, na necessidade de ver convertida e sublimada em canto a mesquinharia da vida.
"Não foi príncipe de poetas do asfalto, mas foi, no julgamento do povo, rei da poesia do sertão, e do Brasil em estado puro.”
Leandro, O Poeta - crônica publicada no Jornal do Brasil em 9 de setembro de 1976.

E Luís da Câmara Cascudo assim o descreveu:

"O mais lido de todos os escritores populares. Escreveu para sertanejos e matutos, cantadores, cangaceiros, almocreves, comboieiros, feirantes e vaqueiros. É lido nas feiras, nas fazendas, sob as oiticicas, nas horas do 'rancho', no oitão das casas pobres, soletrado com amor e admirado com fanatismo. Suas histórias em versos são decoradas pelos cantadores."
Vaqueiros e Cantadores, ed. Globo, 1939.

Leandro Gomes de Baros morreu no Recife, em 4 de março de 1918, vítima da epidemia de Gripe Espanhola.

* * *


Anselmo Vieira com Leonardo Mota

 

Anselmo Vieira de Souza (1867 – 1926)

Anselmo Vieira de Souza nasceu em Ipueiras, Ceará. Analfabeto, foi um dos maiores cantadores e repentistas de todos os tempos, admirado por doutores e iletrados. Segundo alguns historiadores do cordel, Anselmo Vieira nunca viveu do ofício de cantador; somente nos tempos das grandes secas ele saía pelo mundo atrás de ganhar o sustento usando seus dotes de repentista. Seu maravilhoso auto O Castigo da Soberba foi recolhido por Leonardo Mota no livro Violeiros do Norte, de 1925. Sobre esse tema, Suassuna comporia também um "entremez popular" de mesmo nome.

* * *


Capa antiga de um folheto clássico de Silvino Pirauá: "História de Zezinho e Mariquinha”

 

Silvino Pirauá de Lima (1848 – 1913)

Silvino Pirauá de Lima nasceu no município de Patos, Paraíba. Era grande violeiro e repentista. Por sua capacidade de improvisar sobre qualquer assunto, era chamado pelos outros cantadores de "o enciclopédico". É tido como o introdutor do romance longo nos folhetos. Também se lhe atribui a invenção do "martelo agalopado", famoso esquema estrófico de 10 versos decassílabos e ritmo característico.

Silvino Pirauá foi poeta itinerante, percorrendo os estados do norte do país para cantar em feiras e travar duelos poéticos. Em 1898, fugindo da seca no sertão paraibano, transferiu-se para o Recife, onde começou a publicar seus folhetos para ganhar o sustento. "A Peleja da Alma" foi recolhida por Rodrigues de Carvalho em seu livro Cancioneiro do Norte, em 1903.

Morreu em Bezerros, Pernambuco, durante um encontro de repentistas, vítima da varíola.

Projeto e Edição: Eduardo Miranda

 

Links para mais conteúdo sobre o Auto da Compadecida neste blog:

  • Palhaçadas de João Grilo, cordel de João Ferreira de Lima, o primeiro folheto brasileiro em que aparece esse famoso personagem tradicional de Portugal. (Texto original)
  • A Compadecida - filme de 1969, com Armando Bogus, Regina Duarte, Antônio Fagundes, Felipe Carone, Ary Toledo, entre outros, e que foi censurado na época da ditadura por anticlericalismo! (Vídeo completo do Youtube e link para uma matéria jornalística da época)
  • Os Trapalhões no Auto da Compadecida - filme dos Trapalhões, muito elogiado por Suassuna e grande sucesso de público. (Vídeo completo do Youtube)

Comentários